
O planejamento e organização do patrimônio pessoal é essencial para a geração de valor e preservação do legado familiar. Para este tipo de trabalho, coadunar a máxima economicidade fiscal com a crescente sanha arrecadatória do Fisco é cada vez mais desafiador, especialmente considerando a busca de vias legítimas e coerentes com a ordem jurídica, mantendo-se longe das aventuras dos vendedores de ilusões de soluções fáceis e simplistas. No caso das empresas familiares, perfil que representa noventa por cento das empresas brasileiras conforme pesquisas do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o planejamento por seus integrantes possui nuances próprias que são abordadas neste texto.
O trabalho de planejamento patrimonial, de forma resumida, consiste em estruturar bens e direitos de determinada pessoa ou núcleo familiar, delineando planos tributários, sucessórios e societários que garantam segurança e previsibilidade, além da máxima eficiência tributária. Especificamente para empresas familiares, John A. Davis ensina que há uma sobreposição de três dimensões: família, propriedade e gestão.
São dimensões que nem sempre convergem, pois de um lado existem as interações emocionais familiares e, de outro, as necessidades do pragmatismo das demandas empresariais, o que leva seus integrantes com perspectivas e interesses diferentes a frequentes conflitos. Ainda, deve-se considerar a variação inexorável da dimensão tempo e os decorrentes eventos ordinários da vida, como casamentos, nascimentos, separações e falecimentos.
A depender da situação, o patrimônio familiar pode ser objeto de interesses divididos entre aqueles que têm direito sobre ele. Sociedades, por exemplo, na medida em que ocorrem eventos de sucessão da primeira geração, passam a ser lideradas por descendentes diretos (sociedade entre irmãos) e, depois da segunda geração, por parentes colaterais (consórcio de primos) com interesses distintos ou posições divergentes.
O acordo de família como instrumento de solução e prevenção de conflitos entre familiares, tem como objetivo disciplinar aspectos patrimoniais, de governança e sucessórios de determinado núcleo familiar. Com base na liberdade contratual e na licitude de prevenção e extinção de litígios, conforme previstos nos arts. 421 e 840, respectivamente, do CC brasileiro, o instrumento visa prevenir ou encerrar disputas, assim como antecipar soluções de consenso para tais questões.
A prática demonstra a importância do acordo de família para fixar diretrizes sobre a fruição e a administração de bens, bem como sobre a gestão e governança do patrimônio familiar. Após diagnóstico inicial, é possível pautar entendimentos dos familiares sobre os negócios empresariais, definindo harmonizações, divisões ou possíveis vendas de determinados ativos; enfim, facilitando ajustes entre herdeiros e interessados, evitando-se desavenças futuras.
São temas frequentemente discutidos em um acordo de família (i) regras de ingresso, permanência e saída nas empresas familiares (incluindo, por exemplo, programas de estágio para herdeiros, critérios de avaliação e formas de remuneração de familiares, bem como hipóteses de desligamento); (ii) regras de conduta dos familiares (abrangendo, por exemplo, diretrizes sobre o uso do nome, marca e imagem da empresa familiar, participação em redes sociais, atuação político-partidária e em entidades de classe); (iii) criação de conselhos deliberativos e consultivos (como conselho de sócios, conselho de família e outros órgãos consultivos); e (iv) planos de sucessão empresarial, que podem estabelecer etapas, marcos temporais e demais regras aplicáveis à execução da sucessão entre familiares.
Por meio do acordo de família, podem ser definidos os papéis de cada membro, alinhando expectativas quanto às responsabilidades e à relevância de cada um para a continuidade dos negócios. Como diz o ditado, “boas cercas fazem bons vizinhos”, e a clareza sobre as funções de cada integrante é essencial para o desenvolvimento da empresa familiar.
A pauta do acordo de família, embora relevante e necessária, descortina conversas difíceis. A necessidade premente de realização de um planejamento patrimonial de núcleos familiares empresariais, especialmente no atual contexto de reforma tributária com significativas mudanças no tema, pode ser dificultada por aqueles que, em alguns momentos, discordam do planejamento e, em outros, podem não estar plenamente preparados para discutir e deliberar sobre o futuro.
Entretanto, um aspecto particularmente relevante do acordo de família é a sua capacidade para consolidar soluções e entendimentos pontuais sobre conflitos entre familiares, como exemplo, discussões sobre distribuição de dividendos, participação em negócios e usufruto de determinados bens. Por vezes, o entendimento sobre uma questão menor é necessário para que os familiares avancem acordos maiores e perenes. Nessa medida, o acordo de família dá coerência a esses arranjos parciais, reduzindo o risco de contestações e criando um espaço contratual para organização de regras e acordos básicos entre familiares.
Por óbvio, o acordo de família não é instrumento capaz de, sozinho, resolver definitivamente questões de planejamento patrimonial. Observados os limites legais, cabe a outros instrumentos, como contrato social, estatuto, acordos de acionistas, doação com reserva de usufruto e/ou testamento, entre outros, a execução do previsto nos acordos de família. Todos esses instrumentos, utilizados de forma coordenada e negociada, podem ser capazes de trazer estabilidade e previsibilidade às empresas familiares. Não se trata apenas de um mecanismo técnico, mas de instrumento de governança que favorece a preservação de valores e do legado familiar.
Ao fim, a importância do Acordo de Família se traduz no objetivo maior de harmonizar entendimentos e preservar vínculos saudáveis no âmbito da família e da empresa. Nas palavras de André Silveiro, “vínculos saudáveis são baseados em uma boa interação do grupo, em um ambiente de respeito às diferenças, com compartilhamento de cultura, valores e objetivos, com uma boa comunicação entre todos”1. A partir dessa evolução de entendimentos é então criado o caminho das empresas familiares para “assimilação de novos conhecimentos, adaptação ao mercado e decorrente aumento de produtividade nos negócios e da maximização de resultados”2.
Na linha de que prevenir é sempre melhor do que remediar, um acordo de família é mais do que um simples instrumento com diversas regras escritas, mas a formalização de combinações construídas a partir de um trabalho em conjunto da família com a assessoria de profissionais especializados, normalmente advogados, psicólogos e/ou consultores empresariais. Consiste inclusive em treinamento de funcionalidade para a família na discussão e endereçamento de questões complexas. Mas não é panaceia para todos os problemas que possam surgir, pelo que deve ser submetido a revisões periódicas, já que as pessoas e suas famílias crescem e se desenvolvem trazendo sempre novas questões, situações e interações a demandar a construção conjunta de novas combinações.
FONTE: https://www.migalhas.com.br/depeso/439801/acordo-de-familia-governanca-e-prevencao-de-conflitos